o 1º telefonema para as Selvagens
O telefone das Ilhas é: (+351) 291 798 329. Aqui é Portugal!
Por: Teresa Firmino, in Público 09/09/2013
É o território português mais a sul. Espanha não contesta esta soberania sobre as Selvagens, mas veio recordar que as fronteiras marítimas na zona estão em aberto
O estatuto das Selvagens, pedaços de terra a 163 milhas da ilha da Madeira e a 82 das Canárias, está por definir. Portugal diz que são ilhas; Espanha, simples rochedos. É por causa disto que as fronteiras marítimas nesta zona se mantêm hoje em aberto: consoante o estatuto das Selvagens, assim o sítio no mar onde passará a linha entre os dois países. O que falta é estes entenderem-se sobre isso - bilateralmente ou, em caso de desacordo, numa instância como o Tribunal Internacional do Direito do Mar - e esta é que é a história.
Então, onde fica aqui a questão da plataforma continental à volta das Selvagens, falada nos últimos tempos? Esta polémica mistura no mesmo saco, o que lança a confusão, a extensão da plataforma continental, a Zona Económica Exclusiva (ZEE) em redor das Selvagens e o seu estatuto. Na realidade, o estatuto não tem a ver com a proposta portuguesa de extensão da plataforma, ainda que possa haver, como veremos adiante, repercussões sobre este projecto.
As Selvagens saltaram para os jornais com o anúncio de que o Presidente da República, Cavaco Silva, iria visitá-las a 18 e 19 de Julho, dormindo lá, como afirmação de soberania e da habitabilidade das ilhas, e essa visita foi divulgada no fim de Junho. A polémica luso-espanhola sobre as ilhas foi então reavivada pelo envio por Espanha, a 5 de Julho, já depois de se saber da visita de Cavaco Silva, de uma declaração (nota verbal) sobre as Selvagens à Divisão para os Assuntos do Oceano e da Lei do Mar.
Nessa nota, Espanha quer "recordar" que já tinha protestado noutra nota, de 2009, quando Portugal apresentou a proposta de alargamento da plataforma, na Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) da ONU. E diz que não aceita que as Selvagens tenham ZEE, a gerar se fossem ilhas, e que considera rochedos, só com direito a Mar Territorial.
Antes de mais, o que é a extensão da plataforma? Vários países têm obtido dados sobre o fundo do mar, para determinar onde, em frente aos seus territórios, ocorre a transição da crosta continental (ou da crosta emersa das ilhas) para a crosta oceânica. Enquadrados pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (Lei do Mar), esses trabalhos permitirão que tenham jurisdição sobre o solo e subsolo do mar para lá das 200 milhas, desde que provem que a plataforma continental não acaba antes dessa distância e tem continuidade geológica. A plataforma pode alargar-se só a partir do limite máximo da ZEE; e esta última pode ir até às 200 milhas, dando, além do fundo do mar, jurisdição sobre a água.
Ora, à volta das Selvagens, o que está em causa não é a extensão da plataforma portuguesa (sublinhe-se: para lá das 200 milhas). Em linha recta para sul, as ZEE dos dois países, independentemente de onde se traçará a linha entre elas, batem logo uma na outra. Pelo que não há nenhuma plataforma para alargar aí.
A questão de um conflito de interesses, devido a uma plataforma continental portuguesa gerada a partir das Selvagens, também não se põe para leste, em direcção à costa africana. As distâncias entre as Selvagens, as Canárias e a costa africana não deixam grande espaço para lá das 200 milhas. E a haver aí extensões da plataforma, a discussão será entre Espanha, que tem as Canárias mais perto da costa africana, e Marrocos.
Assim sendo, resta o alargamento da plataforma portuguesa do lado oeste da Madeira. No sumário executivo da sua proposta entregue na CLPC, há um mapa a cores: vê-se uma mancha amarela que parte da Madeira para sudoeste e já vem de Portugal Continental. O que esta mancha dá a ver é a continuidade geológica da crosta continental nessa zona e que ela se prolonga para oeste e para sul. Portanto, a proposta portuguesa, para esta área, partiu só das ilhas da Madeira e de Porto Santo. As Selvagens não foram tidas aqui.
É isto que Portugal respondeu agora a Espanha, numa nota verbal de 6 de Setembro em reacção à espanhola de 5 de Julho: diz que a plataforma continental portuguesa "a oeste do arquipélago da Madeira constitui o prolongamento natural do território emerso da ilha da Madeira e do território de Portugal Continental". E frisa: essa proposta "não inclui o prolongamento natural do território emerso das ilhas Selvagens devido à sua localização natural", acrescentado: "Em resultado disso, as ilhas Selvagens não estão reflectidas, em nenhuma circunstância, na proposta portuguesa à CLPC."
Porém, os dados portugueses indicam que este prolongamento vai até muito a sudoeste da Madeira, onde, aí sim, já pode haver sobreposição com uma zona de interesse espanhola. Espanha ainda não apresentou a sua extensão da plataforma para a área oeste das Canárias, mas numa informação preliminar entregue na CLPC, em 2009, tem um mapa com potenciais sobreposições com países terceiros. Portugal é um deles, precisamente na parte final a alargar a sudoeste da Madeira.
Se Espanha não aceitar que a plataforma portuguesa chegue até a essa zona, terá de ter dados da plataforma das Canárias a ir até ali. A CLPC - que aprecia as propostas dos países e se pronuncia apenas se têm direito a alargar a plataforma e até onde - poderá até decidir a favor de Portugal e Espanha na área de sobreposição.
Nesse caso, os dois países terão, posteriormente, de chegar a acordo sobre como fazer a delimitação da plataforma. Aliás, é o que ocorrerá em frente à Galiza, em que Portugal e Espanha apresentaram formalmente a mesma área de interesse para as suas plataformas e concordaram em fazer aí a delimitação mais tarde.
De resto, a nota espanhola de 2009, que Espanha recordou agora como tendo sido um "protesto" (na realidade, não falava das Selvagens nem da ZEE), já ia nesse sentido: que Espanha "não colocava nenhuma objecção" sobre a proposta portuguesa para a área das ilhas da Madeira, desde que não prejudicasse os seus direitos de extensão a oeste das Canárias; e que tinha vontade de proceder, "de comum acordo", à delimitação da plataforma entre os dois países.
A questão das Selvagens é pois outra: se há direito a uma ZEE em redor delas, a dividir entre Portugal e Espanha, caso sejam consideradas ilhas. Aí, a linha das ZEE passaria a meio das 82 milhas entre as Selvagens e as Canárias. Ou se há apenas direito, para Portugal, a um Mar Territorial, de 12 milhas, e uma Zona Contígua até às 24 milhas, sem lugar a uma ZEE - isto no caso de rochedos.
Como ilhas, empurrariam a ZEE portuguesa para sul. Como rochedos, a ZEE espanhola gerada desde as Canárias prolongar-se-ia até às Selvagens e até as passaria. A divisória das ZEE seria assim traçada entre as Canárias e a ilha da Madeira, separadas por 245 milhas. As Selvagens ficariam no meio da ZEE espanhola, rodeadas pelo Mar Territorial.
Para ter estatuto de ilha, segundo a Lei do Mar, um território tem de poder ter habitantes humanos e actividade económica. Portugal argumenta que as Selvagens são habitadas por vigilantes da natureza, que até um Presidente da República lá dormiu, e que houve, até aos anos de 1960, actividade económica baseada nas cagarras (aves marinhas), que alimentavam a população da Madeira. Só não são caçadas hoje, argumenta-se, porque as Selvagens são reserva natural desde 1971 (têm a maior colónia mundial de cagarras).
Efeitos indesejados da disputa
Também aqui, cabe aos dois países entenderem-se sobre a fronteira das suas ZEE, o que terá implícito o estatuto das Selvagens. O assunto pode acabar no Tribunal Internacional do Direito do Mar, mas nunca seria a CLPC a decidir sobre a ZEE.
Se a ampliação da plataforma portuguesa não passa pelas Selvagens, se não houve factos novos a esse nível, e se a delimitação da ZEE não passa sequer pela CLPC, a pergunta que fica é: porquê a nota de Espanha agora? Por que quis lembrar o assunto?
Ainda que esta fronteira marítima esteja em aberto e as Selvagens não estejam directamente ligadas à extensão das plataformas dos dois países, esta indefinição pode ter consequências indesejadas nas pretensões portuguesas para a plataforma. Em caso de disputa numa área, mesmo sem sobreposição de plataformas, a CLPC pode nem apreciar as propostas dos países em contenda (Portugal espera que a apreciação da sua comece em 2015, não devendo estar concluída antes de 2017). Parte das propostas, neste caso a área da Madeira, ficaria parada no tempo.
A este facto não será alheio o cuidado na parte final da nota verbal portuguesa, dizendo que o país "confirma ausência de disputas por resolver com Espanha, apesar de não haver acordo sobre as fronteiras marítimas entre Portugal e Espanha".
Através do envio da sua resposta à nota verbal de Espanha de 5 de Julho p.p., Portugal respondeu à mesma em 6 de Setembro de 2013. Como havíamos escrito, esta foi publicada no sítio da ONU da Internet.