João Rodrigues. "Foi uma lição de humildade, levei umas bofetadas de luva branca"
VELA
por Mary Caiado - 21 de Junho de 2011 - Jornal i online
Dez horas de prancha à vela para atravessar 303 quilómetros entre o Funchal e as ilhas Selvagens. O velejador português cumpriu o sonho e está a caminho do Guinness.
Não foi pêra doce, muito pelo contrário. João Rodrigues, conta ao i, esperava melhores ventos para levar o sonho a bom porto. Propôs-se navegar 160 milhas entre o Funchal e as ilhas Selvagens, o ponto mais a sul de Portugal, em 12 horas. Conseguiu fazer a travessia em menos duas e aguarda a oficialização do resultado para escrever o nome no livro de recordes do Guinness. Caiu à água, ficou com um pé solto, teve de consertar a prancha, a nadar, no meio do oceano Atlântico e até pensou desistir. Mas este madeirense quase a fazer 40 anos não se deu por vencido e ultrapassou todos os obstáculos, incluindo as ondas de quatro metros que o atormentaram. Já com cinco participações em Jogos Olímpicos, Londres-2012 é o objectivo que se segue.
Olá, João. Merece os parabéns. Já recuperou de todo o esforço?
Não, acho que isto ainda vai levar alguns dias porque foi bastante violento.
O que é que está pior, as pernas, os braços ou a cabeça?
Não tenho nenhum grupo muscular afectado, o que é uma boa notícia, porque não tive nenhuma lesão. É simplesmente o cansaço de ter passado tantas horas em esforço.
Desde que chegou o que é que já conseguiu fazer?
Nada! [risos] Esta noite dormi mal porque cheguei às duas da manhã. De manhã só fui buscar o resto do equipamento que estava no navio, almocei e vou descansar a tarde toda para ver se recupero.
Ao certo, quantas horas esteve em cima da prancha?
Dez.
No início as coisas não correram muito bem e chegou a cair ao mar. Porquê?
Depois de passarmos as Desertas, a 40 milhas da Madeira, as condições pioraram, choveu e antes já o vento tinha carregado bastante. O mar ficou alterado e não me consegui adaptar logo, fiquei muito cansado e caí à água. Foi um momento crítico, ponderámos se valeria a pena continuar.
Então pensou mesmo em desistir.
Sim, foi o único momento, porque tinha feito 71 quilómetros e faltavam 230. Já estava extremamente cansado naquela altura e foi muito difícil. Valeram as palavras dos meus companheiros, em vez de pensarmos nos 230 quilómetros, pensámos fazer mais uma hora de cada vez. As duas horas seguintes foram muito difíceis e só a partir dos 150 quilómetros é que me comecei a sentir melhor. Até aos 240 foi uma delícia, a partir daí até às Selvagens foi outra vez um sacrifício. Apanhámos ondas de quatro metros com 25 nós de vento e tive grande dificuldade em travar o andamento - parece um paradoxo, mas aquela prancha ou vai em velocidade de cruzeiro ou então é demasiado difícil pô-la a andar mais devagar, puxar o travão de mão. Mas a 20 milhas consegui ver a Selvagem Grande e a partir daí sabia que já nada nos podia travar.
O que é que lhe passou pela cabeça nesse momento?
Simplesmente, chegar lá o mais depressa possível.
Como é que foi gerindo a parte mental?
Tive vários períodos, mas a partir das 40 milhas foi preciso redobrar a concentração porque qualquer descuido significaria uma queda. Estava a andar no limite da minha velocidade. Mas nós também cometemos um erro: tínhamos duas velas, uma maior e outra mais pequena, e levámos a maior porque as previsões apontavam para vento mais fraco, só que foi difícil controlar e eu andei sempre com as rotações no vermelho. Depois do período crítico pensei onda a onda e cada vez que passava uma era uma pequena vitória.
Sentiu medo?
Não, as pessoas que me acompanhavam são altamente profissionais, duas ou três delas são marinheiros de barba rija e tivemos muito cuidado com a segurança e as comunicações.
Como é que comunicava com eles?
Não era eu, era o skipper do barco que me estava a seguir, através de telefones satélites.
Ingeriu algum alimento durante a travessia?
Imensos! Umas seis ou sete barras de cereais, uma bebida isotónica preparada por mim, cinco litros de água e cinco ou seis bananas. Parava de duas em duas horas, a embarcação aproximava--se e atirava-me a comida. Esses momentos foram fundamentais para descansar.
Aconteceu alguma coisa ao equipamento?
Primeiro, soltou-se um foot strep, que são umas alças onde prendemos os pés. Depois aconteceu algo mais estranho e que me deixou preocupado: o fim da prancha, o leme, partiu-se e tivemos de o mudar dentro de água, comigo a nadar, sem um dos cintos. Fora isso, só tenho umas bolhas nas mãos.
Já sabe quando é que vai receber a placa do Guinness?
Não faço a mínima ideia.
Mas acho que faz ideia de como nasceu esta loucura.
Quando tinha dez anos e mal me conseguia aguentar em cima da prancha havia um pequeno ilhéu fora de São Lázaro, no Funchal, que foi a minha primeira grande aventura. Devem ser uns 500 metros do clube naval até ao ilhéu e lembro-me que quando consegui dar a volta foi uma conquista gigante. Ao longo dos anos fui percorrendo a costa da Madeira e passei a olhar para o horizonte. Comecei por ir às ilhas Desertas e faltavam as Selvagens. Sabia que ia envolver uma logística maior e aproveitei os 40 anos de passagem das Selvagens a reserva natural, porque também faço 40 anos este ano. O parque natural convidou-me e eu aceitei.
Os Jogos Olímpicos de 2012 são o próximo objectivo ou há mais desafios pelo meio?
Pelo meio ainda tenho de me apurar para os Jogos.
E serão os sextos.
É verdade. O apuramento será feito este ano no Mundial da Austrália.
Os velejadores olímpicos, incluindo o João, assinaram um comunicado em que dizem que não voltam a treinar enquanto a distribuição de verbas não for feita. Que mais lhe apetece dizer sobre esta polémica?
Percebo os argumentos que as entidades apresentam, mas há uma razão para além disso, que é a realidade tal como ela é. Há atletas que assinaram contratos por objectivos, que estão cumpridos, e que têm direito a verbas estipuladas por lei. Só que este ano viram esse direito negado. Não é uma questão de cortes, o surreal é que as verbas existem e estão disponíveis, mas não são entregues por questões burocráticas. Neste momento, já não temos mais possibilidade de continuar às nossas custas. Há colegas meus que pediram empréstimos para continuar a competir, isto é surreal.
A suspensão significa mesmo que não vão treinar durante os próximos tempos?
Bem, eu acabei de fazer 300 quilómetros, um bom treino! [risos] Pessoalmente, assumi compromissos financeiros, aluguei uma casa em Inglaterra para treinar até Agosto, mas não vou em representação da Federação Portuguesa de Vela, vou por minha conta e risco. Em Agosto há o evento-teste para os Jogos Olímpicos e vou inscrever-me, mas só participo se as verbas forem desbloqueadas, se não, descarto esse evento em solidariedade com os meus colegas.
Este ano faz 40 anos. Até quando vai andar em cima da prancha?
Enquanto me sentir bem fisicamente, mentalmente houver motivação, a vida que levo tiver significado e, já agora, enquanto a puder suportar financeiramente, vou continuar.
Já navegou pelo mundo inteiro. Qual foi a experiência mais fantástica, excluindo esta última?
Caramba, mas eu ia dizer esta [risos]!
Assim era fácil. Insisto, de todos os sítios onde já esteve, qual o mais fantástico?
Infelizmente, a resposta que lhe vou dar é que é mesmo a Madeira [risos]. Continua a ser o melhor sítio para andar à vela que conheço. Pode ser um sítio muito desafiador e esta travessia que acabei de fazer revela isso, foi uma lição de humildade gigante, levei umas bofetadas de luva branca pelas dificuldades que julgava não poder apanhar, mas apanhei.
Depois de tantas medalhas, ainda se lembra da primeira vez que subiu a uma prancha?
Lembro-me como se fosse ontem! Quando tinha nove anos, o meu irmão mais velho levou-me atrás na prancha, fizemos uma pequena bolina e quando regressámos com o vento a favor ele deixou- -me agarrar à retranca e deslizar. Foi aquela sensação de autonomia, de poder deslizar sozinho, que me apanhou completamente, e desde esse dia nunca quis fazer mais nada.