A “Olhar” publica hoje o segundo dos artigos sobre as ilhas Selvagens. Com as histórias de três dos mais antigos vigilantes, se bem que um deles seja um técnico de informática apaixonado por fotografia. Na noite em que a “Olhar” ficou na Selvagem Grande, houve tempo para “olhar” o passado, “ouvir” as cagarras, “tocar” as histórias de vida, “cheirar” o mar e “degustar” a felicidade de quem já leva 18 anos de viagens Atlântico abaixo para aquilo a que chama “casa”. É uma vida com “cinco sentidos” bem apurados. Porque não há nada que pague a felicidade de poder passar serões ali, com a baía à frente e dezenas de milhares de cagarras a desejarem as boas-noites. |
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As gargalhadas confundem-se com os gritos das cagarras. A noite já caiu há muito e as milhares de cagarras que regressam à Selvagem Grande acompanham a conversa, no quintal da casa, que surge tão naturalmente como as estrelas que se multiplicam no céu. Isamberto Silva, Paulo Moniz e Carlos Freitas, um dos primeiros “vigilantes” da Reserva Natural, criada em 1971, preparam-se para contar as histórias de anos e anos de viagens. A ideia é apenas conversar e o único objecto que denuncia trabalho é o gravador ligado que capta os momentos de uma noite igual a tantas outras. Na baía, um iate francês e, mais longe, as luzes do NRP “Schultz Xavier”. De resto, apenas o farol da Selvagem Pequena aparece à distância e de vez em quando há sempre um vigilante que olha para o outro lado, para se certificar de que tudo continua bem com Pedro e Nélson. Carlos Freitas descreve as diversas fases pelas quais a casa, que ajudou a construir, passou. Com as várias obras para “arranjar” o que o mar estragou em dias e noites de revolta. A natureza sempre o atraiu e os sons das aves marinhas acabam por fazer parte da sua vida. Mas Carlos Freitas, técnico de informática, não se separa da sua máquina fotográfica e confessa que nesta comissão, na Selvagem Pequena — de onde regressava nesse dia para o Funchal, depois da pernoita na Grande —, “tirou” cinco mil fotografias. Aliás, o computador portátil com gravador de CD acaba por não parecer do mesmo “cenário” da Selvagem. Mas ajuda a passar o tempo, à noite. Carlos lamenta apenas que desta vez não houve oportunidade de fazer fotografias subaquáticas, outra das suas paixões. Carlos diz que se tenta não perder a noção do tempo. Porque procura mantê-lo todo ocupado e fazer as tarefas “renderem” até ao último dia. Isamberto Silva tem quase 18 anos de Parque Natural da Madeira. Quando quisemos saber se tem mais alguns pela frente, a resposta não se faz esperar: «Quero levar isto até ao fim» e «fazer comissões nas ilhas o mais possível». Sempre gostou do isolamento. Paulo Moniz, que entrou também há quase 18 anos no Parque, confessa que «o que faz falta no Funchal no dia-a-dia são precisamente estes momentos». De silêncio e minutos incontados. De conversas que se podem ter sem o “stress” do quotidiano de uma cidade. De instantes que valem mais do que se fossem vividos noutro ponto do planeta. Ali, valorizam-se as coisas, por mais pequenas que sejam. E dá-se valor ao evoluir do Parque Natural da Madeira. Relembra-se com nostalgia o que eram e no que foram transformadas as estruturas das reservas. E recorda-se da altura em que eram apenas quatro os vigilantes, quando os técnicos do Governo Regional, nas alturas de férias, faziam comissões.
Chegaram a passar fome por estada prolongada
O Parque é uma escola de vida, garante Paulo Moniz. Carlos Freitas, por seu lado, complementa que é durante as comissões que põe em dia trabalhos que exigem concentração e que não consegue fazer na secretária. “Apanhar” 34 dias de comissão é uma dose que não é recomendável, mas «é nesses momentos que aprendemos a lidar com situações para as quais não estávamos preparados». Aconteceu a Isamberto e a Paulo, numa altura em que não puderam ir buscá-los. «Acabou-se a comida» e «não tínhamos calo», foi nos primeiros anos. Comeram tudo o que havia em casa porque iam embora, e, depois, tiveram de comer massa e arroz, até que um pesqueiro ficou com a âncora presa no fundo e às sete da manhã alguém bateu à porta a pedir ajuda. Paulo foi ao fundo do mar tirar o ferro e em troca receberam um saco com frango, carne e outras iguarias que já não viam há muitos dias. «Há um misto de aventura e de aprendizagem», explica Carlos Freitas. Principalmente pelo espírito de vigilante que foi incutido pelo grupo inicial. «Aprendi a fazer pão nas Desertas» e hoje Isamberto é perito em bolo do caco. Os vigilantes começaram a ser vistos como pessoas diferentes. A geração inicial do parque, conta Carlos, complementava-se. Isamberto adora aranhas, Paulo dedica-se às aves, Carlos adora o mar. Hoje, dizem com toda a certeza que «houve deles, não menosprezando, que vieram porque, não tendo uma base de estudos muito grande, tinham um rendimento superior no Parque». E quem «vinha com uma perspectiva de ganhar dinheiro» dificilmente se aguentou duas semanas.
Do encantamento à falta de motivação
Ali, só se sabe a data certa porque se escreve o diário, pois, normalmente, o relógio é tirado no primeiro dia. O diário é uma tentativa de guardar a memória das ilhas. E começou a ser escrito para registar o avistamento das primeiras aves, das primeiras espécies identificadas, as posturas, os animais que aparecem diferentes… Estão todos arquivados. E vêem-se as diferenças entre os primeiros e os últimos dias das comissões. No início são os poemas sobre a ilha maravilhosa, no fim são as queixas pela falta de comida diversificada. Há gargalhadas que se dão que ecoam por toda a baía. Porque os momentos são dignos de ser recordados. E hoje ri-se do que aconteceu, mas na hora apenas deu vontade de chorar. Paulo Moniz lembra-se do momento em que “abriu” a cabeça quando escorregou a tentar pôr o bote em terra. E com tantos dias no ano para isso acontecer, o dia 29 de Outubro de 1993 não foi o melhor. A Marinha andava atarefada com as buscas dos corpos do temporal e o vigilante teve de ir de traineira para o Funchal. Demorou 26 horas a chegar ao hospital. Hoje, exibe a cicatriz que olha todos os dias ao espelho. Isamberto tem também um momento desses na sua história. Num dia de mar calmo, nas Desertas, foi para um posto de observação de lobos-marinhos no Calhau das Areias. O mar alterou-se e depois de sete tentativas para pôr o bote na água desistiram. A noite caiu e «tivemos de passar ali a noite. Não se podia sair da praia». Às cinco da manhã», conta, «a maré encheu, o mar piorou e tivemos uma situação muito difícil, começando a chover e a cair uma série de derrocadas». Esconderam-se numa pequena concavidade e, algumas horas depois, quando chegaram à casa, estavam sãos e salvos e passaram o resto da estada sem sair para o mar.
O Natal tem árvore e a mesa posta
Quando foram para o Parque, Isamberto e Paulo ainda não tinham filhos. Mas é Carlos quem explica como se pode lidar com filhos, a quem tem de se dizer que o trabalho também se faz fora. Para ele, a melhor coisa que aconteceu foi ter levado o filho à Selvagem Grande para ver o que o pai faz quando está ausente. Passar os próprios dias de aniversário e dos familiares mais próximos é também um dos reversos da medalha. Isamberto teve de adiar, uma vez, a sua própria festa para a qual já tinha convidado muita gente. Mas há um lado positivo nessas ausências de festas: no Natal, defende-se o fígado de tanto almoço e jantar. Ali, o hábito é o de pôr a mesa no dia 24 de Dezembro com os doces e os licores. É uma mesa muito farta. Faz-se a árvore de Natal e ceia-se, inclusivamente. Só passados oito dias é que a mesa é desfeita. A noite de passagem de ano é sempre a gosto do vigilante. Há quem goste de passar o Natal lá em baixo, quem goste do Ano Novo. E há quem tenha de ficar as duas datas, porque não há rendição.
Todos acarinham as ilhas quando as conhecem
«Nesta vida de cigano», há histórias que ficam. E as amizades que ficam das inúmeras viagens com marinheiros. O relacionamento é bom, há deles que regressam, anos depois, em outros navios. «O próprio comandante do balizador “Schultz Xavier”, conta Paulo Moniz, «já fez viagens connosco há dez anos, num dos patrulhas». E, ao longo dos anos, conseguiram arregimentar para as fileiras de defensores das ilhas dezenas e dezenas de elementos das diversas guarnições, que sentem, também, que prestam um serviço ao país. Desaparecer camas, também já aconteceu. O mar, às vezes, prega partidas, quando se lembra de “estragar o dia” aos vigilantes, regressados do patrulhamento ao fim do dia. «Quando nos aproximámos da casa, não existia». Andaram a fazer “sprints” de um lado para outro a tentar resgatar comida, tendo de permanecer, na semana seguinte, numa furna. Na altura, uma vez mais, valeu o apoio da Marinha, a transportar material para reconstruir a moradia que hoje existe.
Açúcar no saleiro e sal no açucareiro
Há, admitem, brincadeiras que se fazem, especialmente aos que vão chegar. Ir aos armários encher as panelas de água para quando os substitutos forem cozinhar tomarem um banho. Pegar num livro e escrever uma receita de um bolo inventado «que levava tudo» também é um dos passatempos. Porque alguém chegou e resolveu experimentar. Mas abrir as cascas dos amendoins, pôr piripiris dentro e fechar as cascas com cola, só lembra mesmo a quem tem de passar o tempo, à noite, com alguma coisa.
Regresso atribulado põe bióloga a dormir
O regresso estava inicialmente marcado para o meio da tarde de quinta-feira. Mas estas coisas não se prevêem, e o balizador avisou, para a casa da Selvagem Grande, que os vigilantes e os cinco biólogos devem chegar a bordo às 13h30. O almoço fica por comer e Isamberto e Paulo têm cebola e cenoura picada para quinze dias. Os biólogos ainda estão no planalto a fazer os seus últimos registos. Come-se qualquer coisa à pressa a lamenta-se que a caldeirada fique por provar, mas, certamente, os vigilantes têm comer para quatro ou cinco refeições. O “stress” de arrumar as bolsas à pressa põe todas as dez pessoas que vão embarcar nervosas. O bote do Parque leva a comitiva para bordo, Paulo Moniz faz as quatro viagens necessárias para o transbordo e a entrada no “Shultz” complica-se. O mar está alterado o suficiente para toda a gente “tomar banho” antes de conseguir subir a escada de madeira. O navio “não pára quieto”, o bote não fica estável. Dali para a frente, nas dezasseis horas de mar que nos esperam, não estão previstas melhorias. A bióloga continental vai-se cada vez mais abaixo e ao final da tarde acaba na enfermaria. Nada que um comprimido de valeriana não resolva, aliado ao alívio que, entretanto, o mar já tinha provocado no seu estômago.
O melhor é ficar deitado
O tempo continua “feio”. O céu já não tem as estrelas da descida e o “Schultz” não desce suavemente as águas da nossa Zona Económica Exclusiva como dois dias antes. Agora, a vaga está à proa e o abrigo da ilha da Madeira só vai aparecer perto da uma da madrugada. O melhor, mesmo, é ficar deitado, a forma mais indicada de equilibrar o corpo e não correr riscos de ser “projectado“ por uma ou outra vaga maior. Assim, com toda a comitiva que regressava preocupada com a bióloga, que dormia descontraidamente na enfermaria, fez-se o regresso, que nos trouxe a bom porto às seis da madrugada de sexta-feira. Algumas das peripécias por que passaram estes homens ficaram aqui contadas, mas temos a certeza de que muitas histórias ficaram por contar. De qualquer forma, há que ter em conta que os mais de trinta vigilantes são, afinal, a face mais visível de toda uma estrutura montada na Madeira, que funciona como um elo. Apesar disso, os que existem agora, quase dez vezes mais do que os quatro do início, são pessoas que abdicam de tudo para se dedicar a uma causa que é, afinal, de todos nós. |
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